Dulcinéia de Fumaça

Como esfinge a ser decifrada
mais um Quixote entre tantos
vai o velho à pedra de encantos
uma légua ao sul da tapera
no lombo do flete, acelera
esporas no couro do bicho
à procura do sonhoso nicho
onde repousa, silente, a amada.


Segue sempre à luz da tardinha
na iminência da noite grande
não ladeio, por mais que eu ande
o Rocinante deste fidalgo
que vai procurar por algo
ao pé da rocha-santuário
cavaleiro andante, solitário
sem vista de Sancho, só minha.


Não leva consigo uma lança
nem escudo ou elmo, nem espada
apenas voa na estrada
assoviando com o Minuano
em seu delírio, ano após ano
achando cura pra desgraça
no cachimbo e em sua fumaça
que apenas pra ele dança.


Senta-se à pedra, ronda lonjuras
como a ver algo que se aproxima
ressurreição de um mito, uma sina
na solidão da campanha
que à fumaça divina se assanha
em silvos de vento no rosto
como se fosse do seu gosto
sorver do cachimbo as agruras.


Ouve uma voz e não medra
algo sutil, pedregoso
mas é fumo em estado gasoso
que lhe inspira fiel culto
naquela fumaça vê um vulto
vindo do centro do universo
que vai lhe ditando versos
brotando por entre a pedra.
Nas mãos empunha um caderno
nele se curva, sombrio-alegre
ainda menos sombrio que alegre
e vai rasurando poesia
mas só dura um tempo a alegria
tempo de fumaça e cachimbo
o sorriso cai logo no limbo
onde dorme seu amor eterno.


Naquele Reino de Sacrifício
o velho lambe saudades
tempo ido, outras idades
de gineteadas, caminhos
nem quer enfrentar  moinhos
duelos já não quer mais
e tal e coisa e coisas tais
só quer se acabar no vício.


Certo dia, por curiosidade
pedi ao velho, que fumava triste
diz meu pai, que mistério existe
neste cachimbo que vai à boca
qual acalanto, coisa louca
espanta a dor da tua querência
o que vês, ou qual ausência
te inspira versos de saudade.


Foi muito simples o que indaguei
ele tragou, foi respondendo
se tu visses o que estou vendo
fumarias mais do que fumo
o cachimbo mantém meu rumo
pois na fumaça que vai soltando
vejo pouco a pouco se formando
a imagem da china que amei.  
Uili Bergamin

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